19.7.15

Ur, a semelhança de Uruk e Eridu, teve suas origens no Período Ubaid, logo no começo dos assentamentos permanentes na baixa Mesopotâmia. Era também um importante centro cerimonial e religioso, e durante os períodos historicamente documentados alojou, sem a menor dúvida, o santuário do deus-lua, chamado Nannar em sumeriano e Sin em acadiano. As comunicações favoráveis também asseguraram prosperidade econômica, e a cidade, em particular durante o terceiro milênio, gozou de considerável poder político, primeiro como cidade independente, depois como a capital de um estado centralizado durante a Terceira Dinastia de Ur. Como sede de governo, beneficiou-se de maciços programas de construção, desde substanciais muralhas citadinas até vastos recintos religiosos. O prestigio dos bem-dotados templos de Ur sobreviveu à influência política da cidade, e muitos governantes posteriores acharam aconselhável manter e dotar os santuários com subvenções, doações e projetos arquitetônicos. Mesmo quando perdeu sua importância econômica em resultado de mudanças na malha de transportes, Ur jamais caiu, como Eridu, num estado de desolação e abandono ao longo dos milênios de civilização mesopotâmia. Junto como outras antigas cidades do sul, Ur foi esplendorosamente restaurada por Nabucodonosor II (6O5-só2). A cidade só morreu quando a função cerimonial deixou de harmonizar-se com um clima político mudado, como ocorreu quando a Mesopotâmia foi incorporada ao império aquemênida (55O-33O). Mesmo antes desse tempo, porém, o culto do deus-lua já se deslocara ainda mais para oeste, para a síria Harran.
---------------
 
Escavando Ur
As ruínas da antiga cidade de Ur estão situadas 25 quilômetros a sudoeste de Nasiriya, a meio caminho entre Bagdá e o golfo Pérsico, e são localmente conhecidas como Tell al-Muqayyar (“o Cômoro de Piche”). Como tantos sítios arqueológicos mesopotâmios, Ur está hoje cercada pelo deserto de areia, enquanto o Eufrates corre cerca de 16 quilômetros mais a leste do que na antiguidade. A cidade estava outrora perto do braço direito do rio, que corria para a laguna situada antes do golfo Pérsico. Essa posição geográfica significou que Ur tinha acesso ao mar, assim como aos outros importantes cursos de água navegáveis que desembocavam na laguna. Em tempos históricos, o tráfego marítimo era de especial significado para as mercadorias de importação e exportação.
A claramente visível colina de ruínas que se erguia mais de 35 metros acima do nível do solo foi investigada pela primeira vez em 1854 por E. Taylor, cônsul britânico em Bassora. O Museu Britânico tinha encomendado uma pesquisa das ruínas meridionais e Taylor escolhera Tell al-Muqayyar como seu quartel-general. A antiga identidade da cidade não tardou em ser revelada pelas inscrições de inúmeras plaquetas, e, embora isso provasse que se tratava da “Ur dos caldeus”, bem conhecida através da Bíblia como a terra de origem de Abraão, nenhuma escavação substancial foi empreendida na época. O interesse estrangeiro por antiguidades, entretanto, instigou a população local a devassar os antes menosprezados tells em busca de objetos vendáveis. Era muito raro os sítios mesopotâmios do sul exibirem alguma escultura, mas, em compensação, havia superabundância de plaquetas cuneiformes que obtinham bons preços nos bazares de Bagdá. Milhares de plaquetas terminaram em numerosas coleções particulares e públicas, arrancadas de seus contextos e, com freqüência, manipuladas de forma incorreta. Por fim, o mercado ficou tão saturado de plaquetas que o seu valor despencou. Essa pilhagem clandestina de material cientificamente valioso — ou assim parecia ao estudioso ocidental — só podia ser sustada por escavações organizadas com competência.
O Museu Britânico estava particularmente interessado em tirar proveito de uma situação política que dava a Grã-Bretanha carta branca na baixa Mesopotâmia. A primeira oportunidade chegou durante a Primeira Guerra Mundial. Campbell Thompson, um ex-funcionário do Museu Britânico, estava trabalhando no serviço de inteligência do Exército na Mesopotâmia e conseguira realizar algumas escavações em Eridu e Ur. Isso levou a uma campanha, dirigida por H. R. H. Hall (1918-19), que também trabalhou na vizinha Eridu e em al-Ubaid. Dificuldades financeiras transtornaram os planos da campanha do Museu Britânico, as quais foram solucionadas quando o rico Museu da Universidade da Pensilvânia propôs a realização de uma expedição conjunta. Havia considerável interesse americano por esse sítio, sobretudo por causa de sua ligação bíblica. Leonard Woolley, experiente arqueólogo britânico, assumiu então a direção das escavações de 192O a 1934. As descobertas mais espetaculares, em especial o conteúdo dos “Túmulos Reais”, acabaram todas em Londres, embora o “espólio” fosse depois igualmente repartido entre o Museu da Universidade da Pensilvânia e o Museu Britânico. Em fins da década de 197O, o governo iraquiano de Saddam Hussein ordenou a restauração parcial do monumento mais substancial, o zigurate de Ur-Nammu, o qual se converteu numa atração turística para visitantes e homens de negócios estrangeiros na área de Bassora. Durante a guerra Irã-Iraque, correram boatos de que canhões antiaéreos tinham sido aí instalados. E ainda um dos monumentos amigos mais impressionantes no Sul do Iraque.
A longa habitação continua, de pelo menos 5OOO a 5OO a.e.c., resultou num profundo e rico depósito de remanescentes em Ur. Os escavadores depararam com um sitio mais ou menos oval, com sua dimensão mais extensa medindo mais de 8OO metros, estando o antigo leito do Eufrates situado a noroeste. Os restos do santuário estavam perto da superfície, coroados pelo cômoro do zigurate, com a mais recente fase de construções neobabilônias dando formato as ruínas. Só uma porção relativamente pequena da cidade foi escavada, e as camadas mais primitivas de Ubaid não foram sequer tocadas. Parecia que durante o quarto milênio Ur devia ter sido um centro de produção de cerâmica, pois encontrou-se um vasto depósito de peças de cerâmica quebradas (conhecido como o “Grande Vazadouro de Cacos”), datadas desde os tempos de Ubaid, continuando no período Uruk e terminando no Período Jemdet-Nasr (cerca de 3OOO). Havia uma grande porção de entulho de barro cozido com vestígios de fornos de cerâmica e até um componente de terracota de uma roda de oleiro. O “vazadouro” também continha um sinete cilíndrico e uma pequena estatueta de um urso de esteatita.
Muito mais informação foi compilada das camadas do terceiro milênio. Leonard Woolley ficou particularmente impressionado com um depósito de puro barro que formava uma densa camada de cerca de dois metros e meio de espessura, a qual separava as camadas Ubaid do que ele considerou estratos “sumérios”. Aí estava, concluiu ele, a prova do “dilúvio da história e da lenda, o dilúvio em que se baseava a estória de Noé”. Embora sublinhasse que era um fenômeno local, ainda assim considerou que ele poderia ter varrido quase por completo os habitantes originais do país, deixando apenas um remanescente “empobrecido e desalentado... Depois, a essa terra quase vazia chegou gente de uma nova raça e instalou-se nas cidades e aldeias, lado a lado com os sobreviventes da antiga raça... A união das duas raças deu origem a civilização suméria”. Os espessos sedimentos da grande cheia, na reconstituição de Woolley do desenvolvimento histórico, dividiram claramente a cultura autóctone ante-diluviana da alta cultura suméria pós-diluviana, embora ele admita certa dose de mistura racial e culturall
Os cemitérios de Ur e os “Túmulos Reais”
As mais famosas e espetaculares descobertas de Woolley foram feitas na área do cemitério, situada fora das muralhas da antiga cidade. O primeiro cemitério pertencia aos Períodos Jemdet-Nasr e Primeiro Dinástico I (primeiro terço do terceiro milênio), nos quais os mortos eram depositados em covas, usualmente de lado e em posições fortemente flectidas. Os objetos colocados nas sepulturas deram importantes pistas para os horizontes culturais da épocal Havia cerâmica policromada, mas o metal era obviamente importante e bem trabalhado. Era usado para brincos de prata, espelhos, colheres e alfinetes de cobre e bronze, e para vários implementos e vasilhames, como tigelas de cobre, copos e tigelas de chumbo. Numa data posterior, talvez por causa do recrudescimento do transporte marítimo, tigelas e vasos de esteatita e clorita provenientes do golfo Pérsico substituíram os objetos tumulares de metal. As ligações a longa distância com o Oriente estão implícitas nas contas e ornamentos feitos de cornalina e lápis-lazúli. Embora não fossem escavados remanescentes arquitetônicos desse Período, os objetos tumulares sugeriram que pelo menos certos setores da população de Ur tinham acesso a artigos de luxo vindos de longe, enquanto os padrões do trabalho com metal e ferro sugerem familiaridade com o material e um senso estético altamente desenvolvido.
Uma das sondagens extramuros de Woolley revelou oito camadas continuas de resíduos orgânicos, entremeados com impressões de selos.
Pertenciam ao Período Primeiro Dinástico I. Foi encontrada ai uma quantidade incomum de selos de portas, o que ocorria pela primeira vez na história mesopotâmia. No nível seguinte, a área começou a ser usada como um cemitério e reteve essa função ate os tempos pós-acadianos. Continha mais de 2.5OO sepulturas e parecia contemporâneo dos estratos que incluíam seios. A maior parte dos corpos estava envolta em esteiras de vime e colocada em covas simples, como no cemitério de Jemdet-Nasr, acompanhada de alguns objetos tumulares, embora um considerável número estivesse sepultado sem eles. Foi entre essas modestas tumbas que Woolley fez a sua mais famosa descoberta: as dezesseis sepulturas de elite que ele identificou como os “Túmulos Reais”. Eram verdadeiras câmaras funerárias de tijolo de adobe e ate de pedra, com abobadas esmeradas rematadas em forma de abside, e situadas numa cova profunda a qual se tinha acesso por uma rampa. Depois que o principal sepultamento tinha tido lugar na câmara, a cova era usada para as oferendas e em seguida preenchida com areia.
Uma característica singular dessas sepulturas era que continham, além do que parecia ser o corpo principal, os corpos de homens e mulheres interpretados por Woolley como “servos” e talvez vitimas sacrificais. A riqueza e a qualidade dos objetos enterrados com o defunto eram e ainda são espantosas. Nada parecido com isso tinha sido descoberto antes na Mesopotâmia. Havia grande porção de ouro e de todos os materiais preciosos disponíveis na época: marfim, pedras semipreciosas, bronze (estanho e arsênico) e alguns vasos modelados de uma pedra Ígnea tão dura que devem ter sido precisos muitos dias para lhes dar forma. Aos homens eram dados machados, punhais, facas, pedras de amolar, assim como coberturas para a cabeça feitas de bandas de ouro com pedras incrustadas. As mulheres ostentavam tiaras douradas, toucados no formato de folhas, pentes, brincos e gargantilhas. Alguns indivíduos tinham artefatos masculinos e femininos (um era de homem, outro de mulher).
O túmulo mais bem-conservado pertencia a uma mulher identificada por seu sinete cilíndrico em lápis-lazúli como Pu-abi. Sendo o primeiro sinal disso uma antecâmara onde jaziam os corpos de cinco homens com adagas de bronze à cinta. Sob uma camada de esteira estavam os esqueletos de dez mulheres, dispostos em duas filas, requintadamente enfeitados com toucados de ouro e colares. Perto deles estavam os restos de uma harpa lindamente decorada, rematados peia cabeça dourada de um touro com barba de lápis-lazúli. Mais abaixo, Woolley deparou com um trenó suntuosamente ornamentado, os esqueletos esmagados de dois bois e uma pilha de belíssimos objetos fúnebres, incluindo um tabuleiro de jogo de lápis-lazúli e marfim, ferramentas e armas douradas, tigelas de pedra-sabão, pratos de cobre, vasos, jarros e copos de prata e ouro, tudo amontoado a esmo.
Uma arca de madeira marchetada que outrora talvez tivesse contido roupas escondia um orifício no piso que dava para outra câmara fúnebre, com seu próprio poço e antecâmara. A câmara continha seis corpos de homens e dezenove de mulheres, desenhos de animais, a mesma espécie de oferendas luxuosas, uma lira e o modelo de um barco de prata. A própria sepultura tinha sido remexida e parcialmente saqueada; o corpo masculino foi identificado pelo seu sinete como sendo o de A-calam-dug, rei de Ur. A tumba da senhora Pu-abi ficava atrás dessa sepultura, e, embora o telhado em abóbada de adobe tivesse desmoronado, em outros aspectos a construção estava intacta. O corpo da rainha jazia num catafalco de madeira, uma taça de ouro perto de sua mão; tinha o peito completamente encoberto por uma quantidade enorme de contas de prata, ouro e pedras preciosas, restos de vestuário ataviado com jóias. O toucado de ouro que ela usava sobre uma imensa peruca enchumaçada ainda rodeava o crânio esmagado, fitas e anéis entrelaçavam-se numa série de pingentes no formato de folhas, e um ornamento semelhante a uma travessa para o cabelo terminava em estrelas de cinco pontas. A Sra. Woolley elevou algum tempo reconstituindo-lhe o rosto sobre o molde de uma das mais bem preservadas cabeças femininas da época, e essa tomou-se a base para uma peça de museu que exibe a cabeça da antiga rainha adornada com as jóias do seu toucado original. Um segundo diadema estava ao lado dela, originalmente uma tira de couro costurada com milhares de contas de lápis-lazúli entrelaçadas com miniaturas de animais e rosetas de ouro. Dois outros corpos femininos estavam em posições agachadas ao lado do catafalco e toda a câmara estava repleta de custosas oferendas, incluindo corantes cosméticos em conchas marinhas. Woolley deduziu que a sepultura masculina era a mais antiga e que a tumba de Pu-abi estava situada acima dela.
Outra sepultura pertencia a um certo Meskalamdug, que se dizia ter sido um rei (lugal). Tinha um elmo dourado no formato de uma peruca, agora em exposição no Museu do Iraque. Uma sepultura em forma de poço, cujo dono não pode ser identificado, continha setenta e quatro corpos, sendo sessenta e oito de mulheres, todas elas trajadas com requinte, com uma lira ao lado de cada uma. Woolley assim descreveu a cena:
Os corpos estavam dispostos em filas regulares no chão, jazendo todos de lado com as pernas ligeiramente dobradas e as mãos colocadas perto das faces, tão juntos uns dos outros que as cabeças dos de uma fila repousavam sobre as pernas dos da fila acima. Aqui podia ser observada ainda com maior clareza... A forma esmerada como os corpos eram arrumados e a total ausência de quaisquer sinais de violência ou terror.
O famoso Padrão de Ur também foi ai encontrado, com seus dois lados separados mostrando cenas de paz e de guerra, assim como duas figuras de bodes, uma imagem a que Woolley pôs o nome de “carneiro apanhado num bosque”. A questão sobre como foi que os corpos das pessoas nas antecâmaras encontraram a morte tem sido muito debatida. Woolley pensou ser “muito provável que as vitimas caminhassem para os seus lugares, ingerissem alguma espécie de droga — Ópio ou haxixe — e se deitassem em ordem; depois que a droga fazia efeito, quer produzisse sono, quer a morte, eram dados os últimos retoques em seus corpos e a cova era tapada”. Fragmentos de tecidos mostraram que as mulheres estavam usando trajes de Iã de um tom vermelho vivo, de mangas longas, e isso levou Woolley a imaginar que deve ter sido uma pequena multidão garridamente vestida a que se reuniu na cova aberta e recoberta de esteiras para as exéquias reais, uma explosão de cor onde sobressaíam os trajes carmesins, a prata e o ouro; era evidente que essas pessoas não eram infelizes escravos mortos da mesma forma que bois sendo abatidos, mas gente das classes superiores, envergando os mantos próprios de suas altas funções e participando — espera-se que voluntariamente — de um rito que, na crença delas, não era mais do que a passagem de um mundo para outro, do serviço de um deus na terra para o do mesmo deus em outra esfera.
Este é um bom exemplo do poder da fluência narrativa na avaliação arqueológica. Woolley teve o cuidado de basear sua teoria das vitimas sacrificais em observações circunstanciais, além de reunir indícios. Sublinhou que os corpos não poderiam ter sido mudados de lugar após a morte sem desarranjar os delicados ornamentos e chamou a atenção para o fato de que um grande caldeirão de cobre estava colocado perto deles, aparentemente associado aos copos com pé alto distribuídos a cada um dos mortos — presume-se que para facilitar a morte por envenenamento. Num exame mais detalhado, porém, nenhuma dessas “provas” se sustenta: a manipulação de corpos após a inumação é uma prática bem conhecida em muitas culturas, especialmente na área mediterrânea, e a incapacidade de Woolley até para conceber a existência de tais costumes deve tanto as sensibilidades vitorianas em relação a morte quanto a sua falta de conhecimentos etnográficos. Outra teoria fantasiosa para explicar por que razão as pessoas teriam sido mortas foi proposta por Cyril Gadd, que sugeriu que os corpos pertenciam a sacerdotes e sacerdotisas que tinham assumido os papéis de deuses e deusas para a celebração de um rito de casamento sagrado.
Não sabemos, pura e simplesmente, o que aconteceu nas “covas da morte”, mas foram propostas interpretações alternativas baseadas, em parte, em recentes exames dos restos de esqueletos, em notas de escavações originais e em paralelos antropológicos. Em primeiro lugar, caldeirões e copos com pé alto eram comuns em outros sítios tumulares do Primeiro Dinástico. Eram provavelmente usados para rituais de libação e não estavam necessariamente ligados a uma rodada de veneno. Além disso, a severa decomposição dos esqueletos fez com que quaisquer afirmações sobre o modo como os indivíduos encontraram a morte não sejam mais do que mera especulação. Também ficou claro que os sepultamentos masculinos e femininos não são do mesmo tempo, embora todos tenham ocorrido num Período relativamente curto. De acordo com recentes sugestões feitas por Petr Charvát (1993), também é necessário levar em consideração o contexto sociológico, uma vez que os ricos objetos tumulares e a elaborada arquitetura das principais sepulturas deixam claro que devem ter pertencido a pessoas que tinham uma posição social de prestigio no seio da comunidade. Ele “não vê obstáculos a proposta de que o sepultamento principal poderia ter sido cercado de cadáveres ‘armazenados para a ocasião’ e pertencentes a pessoas que desejavam fervorosamente usufruir seu repouso final na proximidade de pessoas cuja significação carismática teria sido reconhecida por toda a comunidade”. Portanto, Charvát interpreta os sacrifícios humanos voluntários de Woolley como sepultamentos secundários e explica a presença dos “acompanhantes” mortos como motivada pelo desejo de demonstrar fidelidade e obediência exercidas além da vida. Uma inspeção mais minuciosa revelou que alguns dos corpos tinham sido manipulados e possivelmente descamados antes do seu segundo sepultamento.
Outra questão interessante que recentemente ganhou destaque diz respeito ao status feminino, tal como refletido nas sepulturas de Ur Embora os esqueletos exumados por Woolley não tenham sido examinados por peritos e algumas das atribuídas identificações de gênero sejam duvidosas, ficou claro que mais mulheres do que homens estavam sepultados no cemitério do Primeiro Dinástico IIIa. Um estudo dos objetos tumulares e dos artigos pessoais dos mortos mostrou que eles expressavam diferenças de sexo. Certos objetos faziam com que um corpo fosse culturalmente masculino ou feminino. Não ha dúvida de que a feminilidade tinha poderosas conotações e que algumas mulheres ocupavam altas posições na vida pública; o titulonin, que era usado, por exemplo, por Pu-abi, correspondia a um cargo feminino muito importante que pode ter envolvido uma estreita ligação com a esfera religiosa. Outros artigos da indumentária feminina também foram interpretados como “insígnias do cargo”. Parece que, pelo menos em contextos cerimoniais, certas mulheres eram consideradas especialmente poderosas e teriam derivado seu alto prestigio mais do status profissional que haviam pessoalmente conquistado do que de afinidades de parentesco, como filhas ou esposas de homens poderosos. Esse aspecto é de considerável importância e parece que, pelo menos em Ur, era possível que algumas oficiantes adquirissem considerável influência política e religiosa.
---------------
O Primeiro Reino Dinástico de Ur
A fase final dos Períodos do Primeiro Dinástico (24° século) mostra sinais de uma sociedade plenamente hierárquica. Isso é corroborado pela iconografia dos sinetes e pelo Padrão de Ur, bem como pelos sinais de exercício de um cargo ou função que sugerem especialização profissional em diversas instituições, desde a administração pública até a área militar, com distinções de níveis hierárquicos. Os dezesseis “Túmulos Reais” podem muito bem ser “a codificação da estrutura social em sinais visíveis”, mas qualquer reconstituição do tecido social deve permanecer de caráter provisório. Tudo o que se pode afirmar é que a elite de Ur tinha a sua disposição consideráveis recursos e cuidou de justificar seu status através da participação em rituais públicos que podem ter fornecido uma forma de sanção sobrenatural para a posição social. A iconografia dos selos, em especial os que apresentam cenas de banquetes, aos quais era usual as mulheres comparecerem em maior número, pode sugerir que os festins ritualizados eram um importante tema cultural e uma prática possível.
Os elaborados ritos fúnebres para os personagens mais significativos sublinham a importância do defunto para a comunidade. Tais cultos ancestrais estão bem atestados nos períodos mesopotâmicos ulteriores, quando se acreditava que o espírito de reis mortos e de outras pessoas de elevada condição continuava sua intercessão benevolente em favor da comunidade enquanto fossem mantidos os rituais fúnebres e as oferendas. Também parece que um status elevado estava mais relacionado com o culto do deus-lua Nannar, o deus da cidade de Ur, do que com qualquer autoridade secular. As sepulturas também permitem obter uma perspectiva sobre a cultura material de Ur em meados do terceiro milênio. O padrão de capacidade artesanal mostra familiaridade de trabalho com metais e pedras preciosas, além de uma elevada competência técnica. Materiais vindos de lugares distantes (lápis-lazúli do Budaquistão, por exemplo) provam que Ur detinha recursos suficientes para comerciar e realizar trocas a grande distância.
Como vimos, os remanescentes arquitetônicos do Primeiro Dinástico em Ur foram eliminados ou superados pelas novas construções da época da Terceira Dinastia, cerca de quinhentos anos mais tarde. Apenas algumas das muralhas citadinas podem remontar àquele Período. Também vimos como as cidades começaram então a ser cercadas por muralhas maciças. Estas podiam ser rapidamente levantadas graças a inovação representada por um tipo recente de tijolo que permitia usar um novo método de construção. O tijolo, chamado plano-convexo, tinha a base plana e o topo arredondado no formato de um pão. Os tijolos eram moldados em dimensões padronizadas (21 x 16 centímetros eram as usuais) mas, ao que parece, sem escumar o que sobrava. Podiam ser justapostos horizontalmente, com argamassa preenchendo os interstícios entre as fileiras, ou colocados verticalmente de viés, a semelhança das paredes de pedras secas, com os lados maiores para fora. Quando a direção da inclinação do tijolo era invertida apos a colocação de cada fileira, a parede ficava com um padrão que lembrava espinhas de arenque. Em certas partes das muralhas, sobretudo os trechos estruturalmente mais vulneráveis por serem contíguos a aberturas, como os vãos de portas, os tijolos eram colocados em fileiras horizontais a fim de produzir um contrapeso para as enviesadas. A principal vantagem desse método era que a colocação dos tijolos de viés era mais fácil e podia ser executada por mão-de-obra não especializada. Também era muito mais adequado para a construção de paredes em curva e esquinas arredondadas, uma característica típica das edificações do Primeiro Dinástico — mais um recurso para economizar mão-de-obra, uma vez que as esquinas em ângulo reto das estruturas de tijolo maciço requerem um reforço especial.
As paredes do tipo casamata, recheadas com entulho, eram outra técnica de construção que tampouco requeria mão-de-obra especializada e resultava em apreciável economia de tempo. A inovação técnica é por via de regra uma resposta a uma necessidade; é provável que a competição cada vez mais belicosa entre cidades fizesse da defesa uma questão urgente. A acessibilidade de turmas de trabalhadores e de tropas regulares indica o recrutamento de gente para a realização dos programas de obras públicas. Outra perspectiva para justificar a proliferação de projetos de construções em grande escala é a de que isso teria sido um esforço deliberado para criar trabalho e absorver os excedentes de mão-de-obra ociosa mediante o seu alistamento em programas de longo prazo que se destinavam a dar emprego a uma grande variedade de artesãos e substâncias contingentes de trabalhadores sem qualificações e a lhes ensinar a disciplina de uma forca de trabalho urbana. O beneficio coletivo de tais programas, em especial a construção de templos e fortificações, justificou o dispêndio de esforço e materiais. Em que medida as edificações concluídas contribuíram também para impor fronteiras sociais está menos claro, sobretudo pelo fato de haver muito poucas evidências de áreas residenciais na época.
O santuário mais importante da cidade era o templo de Nannar, o deus-lua. Tinha um zigurate cuja construção inicial datava de c. 3OOO. Subsistem partes da grande muralha que protegia o templo; construída em tijolo plano-convexo, tinha uma espessura de 9 metros. O complexo propriamente cerimonial estava cercado de câmaras subsidiarias paralelas, usadas para armazenamento. Entre as raras plaquetas do Primeiro Dinástico descobertas, algumas revelavam que os porcos faziam parte das oferendas regulares aos deuses e eram depois consumidos no palácio.
Também não se sabe muita coisa sobre a historia de Ur nesse Período. Alguns dos soberanos de Lagash escreveram que tinham conquistado Ur, mas omitiram a menção dos nomes dos governantes derrotados. A lista dos reis sumérios nada tem a dizer sobre Lagash. Registra, por outro lado, que a “realeza” passou de Uruk para Ur e indica Mesanepada como o primeiro rei da primeira dinastia de Ur, a qual compreende cinco reis. A datação revista dos “Túmulos Reais” sugere que alguns dos sepultamentos mais recentes podem ser contemporâneos da dinastia Mesanepada, e que alguns dos mortos podem ter sido membros dessa família. Woolley descobriu uma plaqueta da fundação nas ruínas do templo do Primeiro Dinástico na vizinha al-Ubaid, a qual foi escrita por A-anepada, que se intitula “filho de Mesanepada, rei de Ur”. No sinete do próprio Mesanepada, descoberto no cemitério de Ur, figura o titulo de “rei de Quich”.
Como vimos, alguns estudiosos descrevem uma possível conexão entre a destruição do palácio de Quich, o incêndio que eliminou Churupaque e o uso desse titulo pelo soberano do sul. O filho de A-anepada, chamado Meskiaga-nuna, tomou-se rei ao suceder ao avô. Sua esposa dedicou uma grande taça de calcita “a vida de meu esposo”, como diz uma curta inscrição. (Trata-se, alias, da mais antiga inscrição em acadiano descoberta até hoje.) Os últimos dois reis da primeira dinastia de Ur tinham nomes acadianos, uma clara indicação da simbiose lingüística e étnica entre sumérios e semitas, mesmo nessa região meridional. A Última fase do Primeiro Dinástico foi caracterizada pelas pretensões rivais à hegemonia sobre todo o pais; a lista de reis registra certo número de dinastias que, de acordo com o formato de lista linear, parecem ter sucedido umas às outras. Na realidade, muitas dessas casas reinantes eram contemporâneas.
Nada se sabe sobre a Segunda Dinastia de Ur, e mesmo os nomes da lista de reis estão danificados demais para serem legíveis. Entretanto, é certo que o centro do poder se transferiu do sul para o norte, onde, primeiro, Lugalzagesi de Quich e, depois, os reis de Acádia exerceram o domínio sobre as terras da “Suméria e de Acádia”. Ur foi derrotada por Sargão, que destruiu as muralhas da cidade e a incorporou ao estado acadiano. A posição de Ur durante esse Período é contada numa obra poética cuja importância histórica só recentemente foi reconhecida.
---------------
Uma visão feminina da História: a estória de Enheduana
Este relato diz respeito a uma formidável mulher conhecida como Enheduana, a primeira autora da história. Já citamos o seu nome como o da suposta editora dos hinos dos templos sumérios, em relação com o templo de Enki, em Eridu. Ela causou uma enorme impressão em sucessivas gerações de escribas, sendo suas obras copiadas e lidas durante séculos após sua morte. Recentes estudos eruditos revogaram dúvidas anteriores sobre a autenticidade de sua criação literária e situaram-na firmemente no contexto do Período acádio, sob o domínio do neto de Sargão, Naram-Sin. Temos até uma imagem de Enheduana num disco de calcita que leva o seu nome e uma legenda que diz: “Sacerdotisa-en, esposa do deus Nannar.” Um relevo mostra uma mulher com um penteado do tipo turbante, postada de pé diante do deus sentado. Enheduana não só compilou os hinos do templo como foi também a autora de uma longa e muito difícil composição literária sumeriana conhecida como Nin-me-sara. O meu exame desse texto desafiador baseia-se em sua mais recente edição e tradução pela sumerióloga alemã Annette Zgoll.”
O poema, preservado em noventa plaquetas diferentes de Nippur, Ur, Uruk e outras cidades, começa com uma glorificação da deusa Inanna, dos seus poderes apaziguadores, assim como dos seus poderes destrutivos. Depois, a autora muda para um relato na primeira pessoa das atribulações que está sofrendo por causa de um indivíduo chamado Lugal-ane, que a forçou a abandonar o seu santuário e a impediu de desempenhar seus deveres sagrados. Tendo perdido sua ligação com o deus-lua, Nan¬nar, ela apelou diretamente para Inanna e desafiou a decisão de Lugal-ane. Para resolver o dilema, Enheduana procura ainda obter uma sentença do grande deus An, que decide a favor de suas alegações e restabelece a sacerdotisa em seu antigo posto no templo do deus-lua em Ur.
Nin-me-sara parece referir-se às dificuldades políticas da situação de Enheduana. De acordo com a inscrição do seu sinete, ela fora nomeada sacerdotisa en por Sargão. Isso equivalia a um ato de considerável interferência nos assuntos religiosos de Ur, mesmo que a expressão “filha de Sargão” fosse metafórica e não significasse uma filiação de sangue real. Mas, por outro lado, uma vez indicada como “esposa” do deus-lua Nannar, a principal deidade de Ur, ela também tinha de agir de um modo que refletisse sua estreita relação com o deus e sua cidade. Durante o reinado de Naram-Sin, as cidades do sul, incluindo Ur, rebelaram-se contra o governo acádio. Também sabemos que essa revolta foi liderada por um certo Lugal-ane, a quem Naram-Sin chama o cabecilha rebelde de Ur. De acordo com o poema, Lugal-ane contestou a legitimidade de Enheduana como sacerdotisa en e forçou-a a sair de Ur. A autora expressa essa situação muito concreta e, sem dúvida, assustadora não como uma luta entre protagonistas humanos, mas como algo que aconteceu num nível superior entre as respectivas deidades. Inanna representa Acádia, Nannar representa Ur, e o árbitro supremo é An, o deus-céu de Uruk. Annette Zgoll mostrou de forma convincente que o texto do poema está estruturado como um processo jurídico, terminando com a sentença final proferida por An. O ponto crucial e a identificação da deusa dinástica acadiana Estar (ou Ishtar) com Inanna de Uruk e sua incorporação ao panteão mesopotâmio.
E possível que a solução, proposta por Enheduana, fosse declarar que Inanna era filha de Nannar; isso teria justificado o poder da deusa sobre Ur e toda a baixa Suméria. Não surpreende, pois, a rejeição por Lugal-ane de qualquer pretensão que visasse usurpar o incontestado domínio de Nannar. O impasse só foi desfeito quando Enheduana, do seu exílio, obteve um augúrio divino de An instruindo-a a voltar a Gipar, a tradicional residência e lugar de culto do en em Ur. Isso foi, sem dúvida, uma decisão corajosa, se não temerária. Lugal-ane proferiu ameaças sinistras e, ao que tudo indica, impediu-a pela forca de ter acesso a Gipar. Ela foi, uma vez mais, obrigada a partir, mas isso não deteve a intrépida sacerdotisa de usar sua influência para alcançar o seu objetivo. Não está esclarecido que papel a classe sacerdotal e as lideranças de Uruk desempenharam nesse caso, mas Enheduana logrou obter uma sentença final de An, que aceitou sem reservas a nova posição de poder de Inanna em Ur.
Nin-me-sara é prolífico em imagens que exaltam a proeza material e a terrível energia da deusa. Ao exaltá-la, a autora guinda simultaneamente a deusa a uma posição superior a de Nannar. O triunfo de Inanna pode refletir também o triunfo de Enheduana, cuja hábil manipulação do sistema ideológico a ajudou a garantir não só as pretensões imperiais da dinastia acadiana, mas também a sua própria posição. Ela foi, sem divida, uma mulher extraordinária, corajosa e pronta a defender-se, uma hábil negociadora, uma mulher de saber e poetisa.
A “vitória” de Enheduana em Ur teve conseqüências de grande alcance para o futuro da cidade. Embora perdesse sua independência política durante o Período acádio, a cidade continuou florescente a despeito de Sargão ter desviado o trafego marítimo para a sua nova capital, Acádia. As sepulturas do “cemitério real” continuaram em uso, embora não mais com o sumamente pretensioso aparato funerário das tumbas do Primeiro Dinástico III. Não há nenhum indicio de uma quebra de tradição nem registro a ausência de objetos de prestígio. Foi mantida até a prática de sepultamentos secundários para certos tipos de personalidades.
As escavações produziram pouquíssimo material do Período acádio ou do Período de hegemonia gutiana que se lhe seguiu, sobretudo porque esses níveis foram obliterados pelo importante programa de reconstrução dos reis da Terceira Dinastia. Parece que as cidades do sul permaneceram relativamente independentes do domínio dos gútis, como demonstra a ascensão da cidade de Lagash durante o governo do Príncipe Gudea. Nessa época, Ur parece ter sido indiretamente administrada desde Lagash, pelo menos de forma intermitente. O Último dos profundamente odiados governantes gútios, Tirigan, “a serpente, o escorpião das montanhas, que violou os deuses e arrebatou da Suméria a realeza”, foi afinal derrotado e expulso por Utu-hegal, o soberano de Uruk, que submeteu o seu inimigo vencido e sua família a humilhação de passarem sob o jugo diante dele. Sete anos após essa vitória, Utu-hegal faleceu e o domínio da Suméria passou para Ur-Nammu (c. 2113-2O96), provavelmente seu irmão, que talvez tivesse sido um governador em Ur durante o reinado de Utu-hegal. Seja como for, o certo é que Ur-Nammu escolheu Ur para sede de um novo estado e coube-lhe fundar a mais bem-sucedida de todas as dinastias dessa cidade, a Terceira Dinastia de Ur, ou, para abreviar, Ur IlI.
-------------
Ur durante o período Ur III (c. 2113-2O29)
Distinta das primeiras duas dinastias de Ur, a terceira não foi simplesmente mais uma entre tantas entidades urbanas mesopotâmias política e administrativamente organizadas cuja influência se limitava a área em tomo da própria cidade. Pelo contrario, os reis de Ur III criaram outro estado centralizado que tinha como seu domínio toda a Suméria e Acádia, desde o golfo Pérsico até Jezirah meridional, e grandes áreas dos montanhosos flancos e planícies do Irã ocidental, incluindo a Susiana e o vale do Tigre com seus tributários da margem leste, ate Nínive, como regiões periféricas dominadas pelo governo de Ur. Esse império heterogêneo mantinha-se coeso graças a um verdadeiro exército de funcionários civis, uma vez que o controle burocrático era considerado um instrumento mais confiável de influência permanente do que o poderio militar. Isso era provavelmente uma herança do prévio Estado centralizado, o império acádio, cujos reis também tinham tentado padronizar os procedimentos administrativos em todos os seus territórios. Após a queda de Acádia, a pratica de treinar e empregar grandes contingentes de escribas foi mantida nos vários centros urbanos mesopotâmios, embora declinasse nas regiões periféricas.

As plaquetas de Ur III
Durante os cem anos de Ur III foi produzida uma quantidade enorme de documentação escrita, sendo registradas ate as transações mais corriqueiras, como a compra de uma única ovelha. Em conseqüência, existem mais plaquetas desse período do que de qualquer outro. Centenas de milhares de plaquetas foram descobertas em vários sítios arqueológicos mesopotâmios, sendo um grande número delas desenterrado por escavadores clandestinos que venderam vastas quantidades a comerciantes, sobretudo durante a última década do século XIX, quando as antiguidades “assírias” gozavam de enorme popularidade. Arquivos originalmente coesos tinham sido assim dispersos por todo o mundo e um número significativo deles simplesmente desaparecera por falta de atenção ou interesse de especialistas.
A maioria das plaquetas proveio de cômoros menores, e sua descoberta instigou campanhas arqueológicas como a de Sarzec, de 1984, em Telloh, embora as 3OOO plaquetas que ele encontrou não fossem mais do que o magro remanescente de arquivos saqueados que antes tinham contido cerca de 35OOO plaquetas. Embora os manuais administrativos fossem originalmente desprezados como meros “reis de roupas sujas”, seu valor como fonte de informação sobre muitos aspectos da cultura mesopotâmia não tardou em ser reconhecido. Apesar de cerca de 25OOO já terem sido ate hoje transcritas e publicadas, a tarefa esta longe de concluída e a analise econômica, antropológica e política das plaquetas de Ur fornece, por si só, material de sobra para futuras gerações de especialistas em escrita cuneiforme. As maiores coleções de arquivos não vem da própria cidade de Ur, mas de centros menores, assim como de Telloh, Drehem (antiga Puzriche Dagan, um centro de criação de gado) e Jokha (amiga Umma).
Os burocratas de Ur III trabalharam dentro de um sistema hierarquicamente estruturado que permitia aos funcionários competentes ascender aos escalões superiores. Podemos acompanhar as carreiras de muitas dessas pessoas, graças a pratica de registrar os nomes dos escribas responsáveis. As plaquetas também eram datadas de acordo com o sistema de nomes dos anos. Elas registram as entradas e saídas de produtos e gado, detalhes da mão-de-obra contratada, de trabalho realizado e rações pagas, projeções sobre futuras safras agrícolas, assim como ganho obtido por safra, alocações de sementes de gramíneas e, naturalmente, cálculos e recibos para impostos. São preservados os nomes de milhares de pessoas trabalhando como empregados — ou escravos — em grandes instituições; e, pelo menos de vez em quando, as plaquetas contém informações sobre o tamanho de famílias e os costumes residenciais.
Uma economia e administração centralizadas
E evidente que o estado tinha monopólios para a produção de certos artigos, em especial materiais têxteis. Os tecidos de linho e de lã eram usados para vestuário, e a qualidade, o corte e o padrão eram estritamente controlados. A roupa era um meio sumamente visível de assinalar o status e alguns tipos de vestuário eram usados exclusivamente por certos profissionais e determinadas classes de pessoas. Tal como nos primeiros dias da Revolução Industrial na Europa, mulheres e meninas eram os produtores primários de materiais têxteis e seu status e condições de trabalho situavam-se analogamente abaixo da maioria das outras profissões.
A fim de maximizar a produtividade, a administração do estado introduziu várias medidas-padrão. Estas substituíram amplamente o antigo costume de cada cidade controlar seu próprio sistema de pesos e medidas. A prata tomou-se a principal unidade contábil e estava em circulação no formato de varetas, das quais se obtinha a apropriada quantidade em peso. De suma importância, a administração agrícola parece ter progredido muito e foram feitos investimentos pela autoridade central para implementar técnicas superiores de irrigação. A criação de gado deve ter-se concentrado nos vales setentrionais, que eram climaticamente mais adequados para esse fim. Pesca, criação de galináceos, horticultura e o cultivo de tamareiras passaram a estar integrados na economia, como mostram os manuais administrativos. Isso não significa, porém, que todas as atividades econômicas estivessem estritamente regulamentadas. Possuímos apenas os registros oficiais de grandes instituições, como templos e latifúndios de propriedade da coroa. As fazendas particulares e de menores dimensões não estavam obrigadas, evidentemente, a manter uma contabilidade.
Um novo calendário foi introduzido, válido para todo o país, com os anos sendo denominados em retrospectiva após a ocorrência de um acontecimento significativo: por exemplo, “Ano em que a filha do rei casou com o Ensi de Anshan” ou “Ano em que o templo XX foi inaugurado”. Esse costume tinha estado em uso desde o Período acádio.
Politicamente, o país estava dividido em províncias, cada uma com sua própria capital e administrada por um Ensi (governador provincial) nomeado pelo rei. O Ensi era responsável pela manutenção da estabilidade e pela coleta de impostos, tendo de prestar contas ao rei, Cada cidade estava, assim, firmemente integrada num estado centralizado, e até mesmo as propriedades do templo eram controladas pela autoridade governamental.
---------------
O Gipar e as Sacerdotisas de Entu
O lado sudeste, consagrado a Ningal, esposa de Nannar, era ocupado por um imenso e complexo edifício conhecido como Gipar. E um dos mais interessantes monumentos de Ur, sobretudo por causa de sua importância para a vida religiosa da cidade. Esse edifício de Ur III foi provavelmente construído sobre uma estrutura anterior que pode datar do Primeiro Dinástico: foram encontrados restos de paredes com os característicos tijolos plano-convexos. Sabemos que o Gipar estava em uso durante o período acádio, quando Enheduana, que teve como sucessora Enme-Nannar, filha de Naram-Sin, ai residia, e que depois, quando Ur-Bau de Lagash instalou aí a sua sacerdotisa en, o edifício permaneceu em uso continuo ate o começo do Período Ur mmm, época em que foi muito ampliado e completamente reorganizado.
De acordo com o procedimento tradicional, os construtores começaram por erigir um terraço sobre as destruídas e terraplenadas estruturas anteriores. Sobre o terraço, ocupando toda a superfície, construíram outra subestrutura, traçando o plano completo do edifício final em espessas e atarracadas muralhas de adobe. Esse espaço foi então preenchido e nivelado, e sobre ele se ergueram as muralhas reais. Inscrições em encaixes de portas designam Ur-Nammu como o construtor. Seu neto Amar-Sin contribuiu com acessórios tais como portas.48 Cercado pela mesma espécie de muralha maciçamente reforçada de todos os demais edifícios do recinto, o Gipar estava dividido ao meio em seu interior por um corre¬dor que corria de extremo a extremo em toda a largura da construção. As disposições internas incluíam pátios, cercados por compartimentos de várias dimensões. Estes tinham todas as características de arquitetura doméstica, assim como de áreas de serviço, incluindo ampla área de armazenagem, instalações de cozinha e outras comodidades seculares análogas. O edifício não só serviu como principal residência da sacerdotisa en e seu numeroso séquito e criadagem; era também a residência da deusa Ningal, que tinha seus próprios “aposentos” quase paralelos aos da en. O pátio central estava cercado por cômodos multifuncionais, como numa residência particular; havia potes de armazenamento e um arquivo detalhando as operações relativas a gestão da propriedade, e a cella, ou local do culto, com sua ante-sala correspondendo exatamente a uma saia de recepção. A estatua da deusa estava ai instalada sobre um estrado.
Além desse estabelecimento divino, havia outras instalações rituais próximas dos aposentos da sacerdotisa, e, como sabemos através dos textos, esperava-se que ela dedicasse parte do seu tempo “a orar pela vida do rei”. As escavações mostraram claramente que esse edifício continuou em uso intermitente por muito tempo depois de Ur III. No Período seguinte a queda da dinastia, o papel da en (em acadiano: entu) tomara-se tão importante que havia mesmo um culto para as sacerdotisas mortas cujas tumbas estavam dentro do Gipar; algumas ainda recebiam oferendas regulares e especiais uns sessenta anos após a sua morte. É interessante notar que obra muito completa de restauração foi empreendida na época por uma sacerdotisa en, Enannatum, filha de ishme-Dagan de Isin (c. 1953-1935 a.e.c.), de acordo com tijolos inscritos.
O Gipar passou então por Períodos sucessivos de decadência e restauração até que o cargo caiu por fim no esquecimento. Só durante a última fase da independência mesopotâmia a instituição reviveu pela última vez. Isso ocorreu no âmbito das iniciativas empreendidas pelo último rei babilônio, Nabônido (555-539), para revitalizar templos e cargos que estavam caindo em desuso. Temos conhecimento disso somente através das extensas inscrições do rei descrevendo esse empreendimento. Conforme ele registra, ninguém vivo nessa época sabia alguma coisa a respeito de tais sacerdotisas e ele só tomou conhecimento delas por uma velha inscrição deixada por Nabucodonosor I em (1126-11O5), que descrevia uma sacerdotisa e detalhava sua indumentária e adereços. Em sua busca de autenticidade, Nabonido copiou os trajes e as insígnias para sua filha Ennigaldinana, a última sacerdotisa Entu. Ela possuía uma coleção de antiguidades no Gipar que consistia em antigos tijolos com inscrições e oferendas votivas. Essa princesa babilônia, ao reviver deliberadamente ou, melhor, reinventar um antigo cargo, representa a última de uma extensa linhagem de mulheres, de Enheduana no século XXIII em diante, que agiram como mediadoras entre as aspirações políticas de seus pais e as eternas exigências dos deuses.
---------------
A realeza de Ur III: os hinos reais
Embora as antigas inscrições reais acadianas, ainda visíveis nas estatuas expostas em Nippur, fossem estudadas e transmitidas em círculos de escribas, elas não eram o plano diretor para as inscrições reais de Ur III. Talvez a desintegração do império acádio, os longos anos de dominação estrangeira e a luta para superar a tendência separatista das antigas cidades militassem contra a glorificação oficial do poder político e militar. Cumpre lembrar também que o novo “império” estava funcionando a partir de duas tradicionais cidades do sul, Uruk, o lar da dinastia, e Ur, a nova capital. A longa tradição de formas locais de soberania em cada uma dessas cidades influenciou a forma exterior e a linguagem da realeza dessa era. Também não é surpreendente, portanto, que os reis de Ur III dessem ênfase ao seu papel religioso e cerimonial e reinterpretassem os altos cargos sacerdotais a fim de fortalecerem suas próprias funções na esfera religiosa.
Embora o poderio e o sucesso do governo de Ur dependessem em grande medida da conquista e do uso da forca, as vitórias e as batalhas eram, com raras exceções, proclamadas mais através dos nomes de anos do que em composições literárias. Os himos reais que se tomaram o principal gênero literário em Ur III são, assim, muito diferentes das inscrições reais acadianas. Eles em geral optam por não se deter em realizações mundanas, estando os reis de Ur III ansiosos para mostrar seu respeito pela tradição e pelos costumes religiosos. Ao mesmo tempo, os reis lograram obter um controle sem precedentes sobre as instituições religiosas e as propriedades do templo, e deram-se a si próprios o direito supremo de assumir os mais importantes papéis cerimoniais e rituais. A idéia do rei como mediador supremo entre os deuses e as pessoas já se convertera por essa altura numa antiga tradição e o culto acadiano da realeza foi revivido. Isso criou entre o rei e seus súditos a distância necessária para implementar radicais mudanças políticas e econômicas.
Os hinos reais eram um importante veiculo para a formulação e propagação dessas idéias. Eles sobrevivem sobretudo na forma de copias escolares em babilônio antigo. O gênero floresceu especialmente durante o reinado de Shulgi, filho e sucessor de Ur-Nammu, que governou por quarenta e sete anos, de 2O94 a 2O47. Existem muitos tipos diferentes de hinos reais, alguns dedicados ao rei num desenvolvimento das fórmulas que invocam bênçãos divinas “para a sua vida”, outros muito mais complexos e propiciando a inclusão de falas do próprio monarca. é muito provável que eles fossem representados e cantados em ocasiões cerimoniais na corte. A língua de todos esses hinos era o sumério, mesmo sendo esta a língua de todos os documentos escritos oficiais, e sugeriu-se que essa seria outra tentativa para ampliar o abismo entre a elite dominante e a gente comum, que nesse tempo já não falava o sumeriano (se é que alguma vez o tinha feito). Os esforços dos poetas palacianos para produzir literatura sumeriana refinada, repleta de todos os artifícios da arte, demonstram a continua vitalidade da língua nos círculos intelectuais. A mais importante mensagem desses hinos consistia em reiterar o status especial do rei como “escolhido pelos deuses”,
Pastor Shulgi, quando a tua semente foi colocada no sagrado ventre, tua mãe, Ninsun, te deu a luz, o teu deus pessoal, o puro. Lugalbanda, te modelou, a mãe Ninru te amamentou, An te deu um bom nome, Enlil it ergueu a cabeça, Ninlil te amou.
e imortalizar seu nome:

Para que o rei tenha seu nome preeminente em tempos futuros, para que Shulgi, rei de Ur, faça da canção de sua força, da canção de seu poder, a eterna mensagem de sua insuperável sabedoria e (a) transmita a posteridade para tempos futuros, eu a expus diante do poderoso filho de Ninurta, diante de seus olhos para os tempos futuros. Ele exalta a sua força em canção, a sabedoria, o precioso dom que e o seu, ele exalta.

Todos os aspectos da personalidade do rei eram objeto de louvor: sua aparência e estatura — “Meu rei, quem é mais forte do que tu? Quem pode rivalizar contigo?” (refrão de Shulgi D) —, sua inteligência, suas proezas atléticas, sua pericia nas antigas artes reais da caça (ele luta com os leões frente a frente, em vez de usar armadilhas) e sua sabedoria: “Ninguém pode escrever uma plaqueta como eu (...) somar, subtrair, contar e fazer contas, (eu) completei todos (os cursos)” (Shuigi B, c). Ele destaca-se na música, sua voz é extremamente doce e ele toca até os instrumentos mais difíceis. Também é perito na leitura de augúrios; ninguém pode interpretar os fígados tão sabiamente quanto ele.
Esses hinos, naturalmente, adulam e exageram, mas também revelam que qualidades e realizações eram dignas de louvor na corte. Por certo a música e a poesia desempenharam um importante papel, e parece que ate algumas damas da corte tentaram também compor (ou, pelo menos, encomendaram a algum menestrel) peças líricas, aludindo com freqüência a sua intimidade sexual com o rei.
E tentador pôr de lado esses panegíricos dedicados ao soberano perfeito como típicos produtos de bajuladores poetas palacianos que tem uma importância muito limitada para o mundo do lado de fora do palácio real. E difícil imaginar que essas canções refinadamente trabalhadas numa linguagem que nada tinha de corrente pudessem ter sido “populares”. Elas são interessantes, porém, pelo conceito de realeza proposto. Por um lado, o rei é inegavelmente humano, embora uma espécime de perfeição e talento consumados, que cumpre suas obrigações regias com zelo e sabedoria. Por outro lado, distingue-se por sua estreita afinidade com os deuses, não apenas como o representante da humanidade, mas, de alguma forma, aparentado com eles. O relacionamento mais interessante é entre o rei e a deusa Inanna.
O rei como consorte de Inanna
Nos tempos de Ur III, sobretudo durante o reinado de Shulgi, o rei é regularmente chamado de “marido/consorte de Inanna”, não apenas “bem-amado”, como os reis acádios, ou “eleito no coração de Inanna”. De fato, vários hinos reais aludem especificamente a natureza sexual da ligação. No seguinte excerto de um dos hinos de Shulgi, a deusa fala a respeito do rei como o pastor Damuzi, que era tradicionalmente o amante e noivo de Inanna. Havia numerosas canções celebrando seus amores.

Desde que suas belas mãos cingiram meu dorso,
Desde que meu senhor, o que se deita junto da Sagrada Inanna,
O pastor Damuzi
Em (seu) regaço me afagou e acalmou com leite,
Desde que em meus... braços puros... repousou,
Desde que como preferência... (e) cerveja preferida... ele tocou
[Desde que] o cabelo solto em meu regaço ele [desenredou] para mim,
Desde que com o cabelo (de) meu... ele brincou,
Desde que em minha pura vulva pousou as mãos,
Desde que em... do meu doce ventre se deitou,
Desde que como “seu barco negro” ele...
Desde que como “sua barcaça negra” ele...
Desde que na cama falou agradáveis (palavras),
Eu (também) direi agradáveis (palavras) ao meu senhor,
Um bom destino decretarei para ele.

A deusa está tão satisfeita com a forma como ele pratica o amor que o abençoa na expressão tradicional “decretar um bom destino”.
Em muitos dos textos de Ur III relativos a Inanna, seu poder libidinoso é o seu principal predicado. Ela é a deusa da prisão primitiva, assemelhando-se muito ao id freudiano. Inanna é descrita como ambiciosa até o extremo da agressividade, como alguém “que ama a batalha” e é dotada de um gigantesco apetite sexual. Em contraste com os poderes fertilizantes e fecundantes dos deuses machos, como Enki, o dom especial dela é o desejo, associado nos textos com a vulva, cujo potencial orgástico é visto como ilimitado.
Enheduana, em tempos acadianos, tinha ressaltado o potencial destrutivo da vitalidade de Inanna, os terríveis me da deusa. Agora, no Período Ur III, temos outro caso de conciliação do pensamento teológico com razões políticas. O rei como consorte de Inanna é uma noção complexa, pertencente em um nível ao parentesco metafórico com as principais deidades que expressa os estreitos vínculos do soberano com os deuses da terra. O rei é chamado de “filho” de Ninsun, “irmão” de (o divino) Gilgamesh, “filho” de Lugalbanda e “marido” de Inanna. Como marido de Inanna, é também Dumuzi, o Pastor. Ha muitas estórias sobre o Pastor. O rei age como um verdadeiro pastor; está em seu aprisco, cercado de animais copulando. Inanna anseia, impaciente, pela consumação da união carnal de ambos. Mas também ele está condenado; a mais famosa descrição de suas atribulações faz parte do mito da “Descida de Inanna ao Inferno”. Muitas canções e poemas tratam da incansável e, em última instância, fútil tentativa de fuga do Pastor dos demônios do inferno.
Os hinos reais que retratam o rei como Dumuzi não se referem ao destino aziago de Dumuzi. Pelo contrario, ele preenche ai o papel de noivo da deusa, da mesma forma como Enheduana tinha sido chamada a “noiva de Nannar”. Talvez isso possa ser visto como nina reinterpretação do antigo cargo deen, o qual era tradicionalmente confiado a uma mulher em Ur e a um homem em Uruk. Isso também pode explicar a popularidade das estórias sobre os reis da Primeira Dinastia de Uruk, que governaram por cerca de mil anos antes dos reis de Ur III. Comum nessas narrativas é a noção de que o relacionamento intimo com Inanna era de fundamental importância para o governante. Todas as estórias dizem respeito à rivalidade entre Uruk e a terra de Aratta, a qual é descrita como estando situado em algum lugar nas montanhas do leste.
O desfecho da rivalidade das cidades é apresentado como dependente da questão sobre que en, o de Uruk ou o de Aratta, agradaria mais a Inanna. A dada altura, Enmerkar até escarnece do en de Aratta com a declaração de que este só pode ver a densa num sonho, ao passo que ele, Enmerkar, se deita realmente com ela, “em doce sonolência”, e acompanha Inanna “durante quinze horas duplas no leito enfeitado”. Essas estórias podem muito bem incorporar temas narrativos mais antigos, e não devem ser vistas como criações totalmente originais dos poetas palacianos de Ur III. Entretanto, a ênfase sobre a condição en masculina como típica instituição de Uruk e fonte do poder secular continua sendo significativa. Shulgi, tendo assumido o título de “en de Inanna”, pôde usar as narrativas uruquianas para realçar as suas próprias conquistas e reformas, as quais eram presumivelmente sancionadas pelo “amor” de Inanna. Seu parentesco fictício com os deuses e em especial suas relações “maritais” com Inanna tinham, talvez, o propósito de atenuar as críticas as suas reformas mais controvertidas, como a sua interferência na administração do templo. A partir do vigésimo primeiro ano de seu reinado, ele colocou muitos dos antigos templos sumérios ate então independentes sob controle do estado e impôs o pagamento de impostos.” Apenas uns poucos, como o templo de Inanna em Nippur, desfrutavam de relativa autodeterminação.
Outro dos hinos de Shulgi descreve o giro realizado pelo rei por todos os principais santuários do seu reino. Tais aparições públicas eram importantes, porque permitiam ao soberano montar um espetáculo impressionante com oferendas generosas e exibicionismo exuberante. Verificamos, uma vez mais, a importância do ritual público contra o pano de fundo das cidades mesopotâmias, e a relação intima entre a esfera religiosa, cerimonial, e a Realpolitik. Um governo fortemente centralizado, com mecanismos de controle de grande alcance ainda precisava assegurar-se de que as antigas instituições, especialmente os principais templos nas cidades, não representavam uma oposição de peso. O rei podia exercer de certo grau de controle direto sobre a principal posição oficial nas hierarquias dos templos e declarar determinados setores, sobretudo os economicamente produtivos da agricultura e das manufaturas têxteis, dependentes da fiscalização estatal, mas tudo isso necessitava de aprovação divina. As nomeações, por exemplo, eram baseadas em decisões oraculares (as quais podiam ser repetidas até se alcançar um veredicto ritualmente correto e politicamente aceitável); as reformas importantes podiam ser justificadas com base numa deliberação dos deuses.
As impecáveis credenciais do rei para exibir sua estreita colaboração com as deidades mais importantes eram de igual modo vitais. Os vários cultos dos deuses citadinos eram inseridos num sistema dinâmico pelo qual as estátuas divinas realizavam extensas “jornadas” através dos principais cursos de água, “visitando uma cidade após outra” como se fossem parentes; o que, é claro, todos eles tinham, de certo modo, passado a ser em conseqüência da reforma do panteão oficial organizado de acordo com estruturas de parentesco patrilineares que ecoavam as da sociedade de seu tempo.
--------------
O fim de Ur III
O êxito do governo de Ur III em exercer tal controle sem precedentes foi também um fator que contribuiu para a queda da dinastia. O complexo mecanismo da burocracia impedia a rápida tomada de decisões. A super-produção de cereais levava a um uso exageradamente intenso do solo e a uma queda de produtividade. O sistema de exação tributária, que continuava a ser eficiente, tornou-se cada vez mais opressivo para setores mais vastos da população. Novas ondas de imigrantes oriundos das áreas limítrofes do deserto ocidental e do próprio interior acadiano desestabilizaram o equilíbrio político nos territórios dependentes.
Os amoritas, ou martus, como eram coletivamente chamados os recém-chegados, eram grupos tribalmente organizados, mas não necessariamente os nômades selvagens e sem lei que os compêndios mesopotâmios retratam. Como em Períodos subseqüentes de imigração em massa, os recém-chegados podiam contar com algumas redes existentes, fosse através de ligações de clã ou mediante trocas recíprocas, que lhes permitiam estabelecer uma base sólida entre as populações locais. Especialmente em Babilônia e nas regiões do médio Eufrates, os chefes amoritas tinham obtido pela forca novos domínios de influência, e seguiu-se uma feroz rivalidade por pastagens, terras aráveis e predomínio político. O governo de Ur perdeu o controle sobre as províncias orientais e nordestinas, e então, numa tentativa desesperada de sustar a ampliação da revolta e da imigração, o rei Shu-Sin (sucessor de Amar-Sin, c. 2O37-2O27) ordenou a construção de uma muralha de 27O quilômetros de extensão. O último rei de Ur III, Ibbi-Sin (c. 2O26-2OO4), enfrentou não só a contínua expansão das tribos pastoris, mas também a rebelião no próprio coração econômico e político da Suméria. Através de uma combinação de diplomacia e ação militar, ele logrou manter uma paz precária até fracassar, por fim, a sua política de garantir apoio por meio de alianças de curto prazo com governantes provinciais cada vez mais poderosos. A situação pode ser avaliada com base em uma série de cartas que o rei trocou com um certo Ishbi-Erra, ex-governador de Mari, um vassalo e funcionário de Ur que granjeara muita influência na Babilônia central. Quando a capital sofreu uma aguda escassez de víveres, Ishbi-Erra pode sujeitar a cidade a chantagem para permitir a chegada de navios com suprimentos de cereais. Ele firmou alianças com Nippur e Isin, instigando muitas desavenças; juntou-se a outros inimigos de Ur e acabou por ganhar o controle dos remanescentes do império de Ur III, fundando uma nova dinastia em Isin.
A cidade de Ur, entretanto, foi devastada e destruída, não pelos amoritas ou pelas tropas de Ishbi-Erra, mas pelos de longa data oprimidos habitantes de Elam e Shimashki, províncias no Ira ocidental que tinham sido anexadas por Ur. A destruição foi total. O recinto sagrado foi saqueado e queimado, e os sobreviventes que não foram levados para o cativeiro enfrentaram a morte lenta pela fome ou pela doença quando os campos circundantes foram calcinados e os cursos de água contaminados. Ou é este, pelo menos, o cenário descrito num longo poema sumério de cerca de 52O versos.
“A Lamentação pela Destruição de Ur”
O poema evoca o sofrimento da cidade, seus deuses e seu povo, assim como os efeitos da destruição da capital sobre o país como um todo. Isso é geralmente expresso em frases negativas, como uma descontinuidade do estado normal de coisas:

Que nas margens do Tigre e do Eufrates crescem “ervas daninhas,”
Que ninguém se dispõe a partir, que ninguém busca a estrada,
Que a cidade e seus povoados arredores estão devastados e em ruíinas,
(...)
Que a enxada não acomete os férteis campos, que a semente não é plantada,
Que o som da canção daquele que cuida dos bois não ressoa na campina,
Que a canção da ordenha não ressoa nos estábulos.
Os deuses abandonaram seus santuários e os templos foram maculados, os sacerdotes en foram seqüestrados, os rebanhos das propriedades do templo foram abatidos, os tesouros pilhados. Depois é descrita a situação na própria cidade de Ur, um estado de fome absoluta que priva ate mesmo o rei de alimento e bebida, todos os armazéns foram saqueados e permanecem vazios. Nem “os cães farejam mais na base das muralhas da cidade”, pois não encontram aí mais sobras de comida. Os deuses decidiram então que, após tão longo sofrimento, o país fosse recuperado, que o mal passasse a recair sobre as nações inimigas. O poema termina com uma série de decisões positivas ou bênçãos e, numa reversão das pragas iniciais, anuncia o retorno a um estado de prosperidade.
 Que no Tigre e no Eufrates a água corra (de novo) — que An não mude isso,
Que haja rios com água e campos com cereais — que An não mude isso,
Que os mangues sustentem juncos e novos brotos no canavial — que An não mude isso,
Que a terra seja povoada de norte a sul — que An não mude isso,
Que as cidades sejam reconstruídas e o povo seja numeroso — que An não mude isso,
Possa um bom e abundante reinado ser duradouro em Ur.
Possam as pessoas deitar-se em pastagens seguras e copular!
Ó Nannar — oh, tua cidade! Oh, teu templo! Oh, teu povo!

Como o tradutor desse poema sublinha, o texto foi escrito para mostrar a continuidade entre o estado de Ur e a dinastia de Isin que se lhe seguiu, criada pelo ex-governador de Ur, Ishbi-Erra, embora o governo de Isin nunca seja explicitamente mencionado. A composição usou como modelo a “Maldição de Agade”, mas na “Lamentação” o último e infeliz rei de Ur, Ibbi-Sin, não é acusado de nenhum ato sacrílego, mas apresentado como vítima de um destino fatídico decretado pelos deuses. Os grandes deuses, em particular Enlil, podem conceder poder político e prosperidade a uma cidade de sua eleição, e podem igualmente retirar esse apoio sem qualquer razão aparente. Agora, assim dá o poema a entender, e a vez de Isin, e o seu próprio triunfo sobre Ur e um sinal de que os deuses aprovam a mudança.
Ishbi-Erra e seus seguidores não tardaram em apresentar-se como legítimos herdeiros do estado de Ur e encamparam a maioria dos petrechos ideológicos do antigo “império”, embora nem Isin nem Larsa — ambas as cidades competiam peia hegemonia— conseguissem manter seu domínio sobre a Suméria e Acádia. Mas, à parte a mensagem política da lamentação de Ur, o poema dá-nos uma idéia da visão ideal de vida na Mesopotâmia. Evoca os rios como a base de toda a vida, dos recursos naturais dos pântanos e da bem administrada gleba de terra cultivada que repercute nas canções dos lavradores e das leiteiras. A vida urbana é caracterizada por atividades festivas, pela “algazarra dos templos” — uma referência aos sons de tambores e outros instrumentos —, pela abundancia de oferendas de alimentos, pelo cheiro de carne assada; com uma vida social ordenada, um judiciário funcionando e elaborados ritos representados por especialistas.
As lamentações pelas cidades destruídas tomaram-se um gênero de literatura sumeriana em que se contrastava um cenário de desolação e infortúnio com o esperado funcionamento da cidade e do campo. Eram recitadas por ocasião de atividades potencialmente perigosas que os deuses poderiam interpretar como agressivas — em especial a demolição de construções do templo para fins de restauração. O tema subjacente, entretanto, é que cidades, dinastias e estados são parte de um continuo processo de fluxo e refluxo de destruição e renascimento. O saque de uma cidade, mesmo o ataque mais devastador, não significa um fim para todas as cidades, o desaparecimento de uma linhagem régia não é o fim da realeza, uma mudança de governo não implica uma radical mudança de vida para a maioria dos cidadãos. Os mesopotâmios, talvez por causa de sua experiência de uma ecologia inerentemente instável, adotaram uma visão de longo prazo da elasticidade e viabilidade fundamentais de sua cultura. As lamentações pelas cidades destruídas eram registros históricos deplorando destruições reais como nua afirmação de fé em que “as cidades serão reconstruídas”, em que a vida continuara.
Quanto a cidade de Ur, a queda da dinastia de Ur III significou que ela perdeu sua importância como a capital de uma potência imperial. Mas a própria cidade reviveu e continuou a prosperar por muitos séculos mais. Como um centro de saber, foi muito importante no período Babilônio Antigo e reteve esse prestigio por muito mais tempo do que sua fama política. Continuou sendo um dos grandes centros de culto como sede do deus-Iua Nannar e sua consorte Ningal, com seus fortes vínculos com a fertilidade do gado, até o derradeiro instante da era mesopotâmica.
Vimos como os governantes cassitas reconstruíram os santuários e como os reis babilônios contribuíram para a restauração e manutenção dos templos de Ur. A antiga tradição de comércio foi também mantida, como provam as plaquetas que tratam de questões econômicas Ur é um dos melhores exemplos para mostrar a tenacidade da idéia urbana mesopotâmica e como a santidade acumulada do recinto religioso, combinada com uma infra-estrutura urbana de considerável complexidade, forneceu
 uma matriz que podia suportar o fracasso político e econômico — e ainda mais importante, o sucesso. Acádia e Nínive, ate mesmo Mari, nunca se recuperaram de sua glória de terem sido o epicentro de poder político. Ur sobreviveu não só à destruição pelos elamitas, mas ao mais centralizado sistema estatal que o Oriente Próximo tinha ate então visto.