8.3.11

Joana d’Arc: da fogueira aos céus





Joana d’Arc: da fogueira aos céus
Cinco séculos após sua execução, a jovem guerreirafrancesa Joana d’Arc afirma que continua sendo mal interpretadae insiste na tese de que os santos realmente falavam com ela
por Lúcia Monteiro*Ela era apenas uma camponesa do vilarejo francês de Domrémy. Mas, aos 13 anos, Joana d’Arc começou a escutar vozes. A jovem, nascida em 1412, dizia ouvir santos dando-lhe instruções sobre como vencer a Guerra dos Cem Anos (travada entre a França e a Inglaterra, de 1337 a 1475). Quatro anos depois, Joana lideraria milhares de soldados, motivados por sua fé. Aquelas vozes, entretanto, acabaram servindo de pretexto para que ela fosse queimada na fogueira em 1431, depois de um julgamento religioso comandado pelo reitor da Universidade de Paris. A Igreja Católica, que a condenara por bruxaria, acabou revertendo o veredicto e, no ano de 1920, a canonizou.

Alguns historiadores acreditam que a participação de Joana na guerra tenha sido mais folclórica do que efetiva. De qualquer modo, seu prestígio atual é inquestionável. Ela é venerada mesmo fora das igrejas – inclusive pela Frente Nacional, partido francês de extrema direita. O primeiro dos filmes sobre a guerreira, conhecida na França como La Pucelle (“a virgem”), foi feito ainda em 1899, nos primórdios do cinematógrafo. Confira abaixo a entrevista que Joana concedeu, depois de muita insistência, a História.

História – Por que você resistiu tanto até concordar em falar conosco?

Joana D·Arc – Olha, passei muitos meses de minha curta vida respondendo a questionamentos no Tribunal da Inquisição. No geral, as pessoas estavam muito pouco dispostas a escutar o que eu falava. Elas tinham muitos preconceitos. Mas resolvi me abrir, principalmente porque acho que fui muito mal interpretada e queria ter a oportunidade de dar a minha versão da história, que nunca foi ouvida de verdade e, pior, nunca foi compreendida.

Como você, que não tinha treinamento militar nem qualquer experiência no campo de batalha, conseguiu liderar tantos homens?

Minha fé em Deus e a proteção divina já explicam tudo. Mesmo assim, posso dizer que, entre os integrantes das tropas inglesas e francesas, muitos tinham preparo parecido com o meu, ou seja, praticamente nenhum. Havia muitos civis no combate. Claro que a principal diferença era o fato de eu ser mulher. Mas, durante as batalhas, ninguém se lembrava disso. Eu tinha os cabelos bem curtos e me vestia como os demais soldados.

Alguns pesquisadores acreditam que sua presença não alterou em nada os rumos da Guerra dos Cem Anos. Afinal, a paz só veio mais de 40 anos depois de sua captura...

Já me habituei a esse tipo de comentário maldoso e infrutífero. Acredito que a importância de uma menina numa guerra dominada por homens sempre será colocada em questão. É obvio que os autores dessas bobagens são homens também. Sei da importância do meu papel na libertação do cerco à cidade de Orléans, em 1429. É verdade que os ingleses estavam desmotivados e praticamente nos deixaram ganhar. Mas era Deus, através de mim, que dava ânimo e fé aos combatentes franceses.

Você vivia rodeada de homens nos campos de batalha, dormia ao lado deles, alguns chegaram a dizer que viram você nua... Nos dias de hoje, muitas pessoas acham estranho que você tenha mantido a castidade.

Eu prometi a Santa Catarina que me manteria virgem e jamais pensei em descumprir meu pacto. É verdade que eu vivia cercada por homens, mas eles sempre me respeitaram. A rainha da Sicília, sogra do meu estimado rei Carlos VII, chegou a me examinar durante o inquérito de Orléans e atestou minha virgindade.

Você sempre disse ouvir vozes e ver fadas. O que representam essas metáforas?
Metáforas?! Como assim? Olha, eu fui muito mal interpretada e por isso relutei em dar essa entrevista. Todos os meus depoimentos foram deturpados, as pessoas têm dificuldade de entender. Santa Catarina e São Miguel sempre falaram comigo. Foram eles que me mandaram procurar o rei Carlos VII, que me disseram para ir a Orléans... Agora, nessa história de fada não dá mesmo para acreditar. Até hoje não sei por que inventaram isso.

Mas você tem como provar que essas vozes eram mesmo de santos?
Eu já expliquei isso no tribunal diversas vezes. As pessoas parecem querer que eu faça mágicas para provar meu dom, minha sensibilidade. As vozes não surgem quando eu quero. Isso é coisa séria, é preciso ter fé. Mas tudo que eu previ de fato aconteceu. A guerra só não terminou antes porque fui capturada pelos ingleses e não pude mais ajudar meu amado rei.

E por que Deus defenderia a França na Guerra dos Cem Anos? Deus por acaso é francês? Ha quem acredite que Deus é brasileiro...

Não costumo fazer perguntas para Deus, apenas sigo suas instruções. Duvidar da palavra divina é coisa de quem não tem fé. As vozes me pediram que ajudasse o povo francês a superar aquela infelicidade toda, de guerras, saques, invasões. Foi o que eu fiz.

Aquela espada encontrada na igreja é a principal prova de que você realmente era predestinada?
Veja lá como você usa as palavras. Nunca disse que sou predestinada. Estou escolada com essas perguntas tendenciosas, já me dei muito mal com a Inquisição por causa delas. Mas a espada de Santa Catarina foi, sim, uma prova de que eu estava certa. Falei que ela estaria enterrada atrás da igreja de Fierbois e que ela teria o desenho de cinco cruzes. Eu estava em Tours quando as vozes me disseram isso, pedi que buscassem a espada por mim e, de fato, ela estava lá.

Você acompanha os filmes e livros que são feitos sobre você? O que achou da Milla Jovovich no filme de Luc Besson?

Sim, acompanho. Ela é uma mulher linda, fiquei lisonjeada por a terem escolhido para fazer meu papel. Mas o filme me ofendeu muito. E a toda minha família também. Imagina, lá eles dizem que minha irmã foi violentada. Isso não aconteceu!

* Lúcia monteiro é jornalista e faz mestrado em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais na Universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris. Trabalhou seis anos na revista Veja São Paulo, onde se acostumou a falar com celebridades – o que a ajudou a entrevistar uma santa pela primeira vez.

Saiba mais
Livros


Joana d’Arc, Mark Twain, Record, 2001 - O célebre escritor americano publicou, em 1895, este romance dedicado à heroína. Twain inventou um amigo de Joana para ser o narrador da história.

Jeanne d’Arc: de Domrémy à Orléans et du bûcher à la legende, Roger Caratini, Archipel, 2002 - Discute como a jovem virou símbolo de patriotismo. Reproduz trechos do processo de inquisição, com depoimentos da própria Joana.

Filme

Joana d’Arc de Luc Besson, Luc Besson, 1999 - Aqui, Joana teria se tornado muito religiosa e passado a ter alucinações após o estupro da irmã.

Revista Aventuras na História